O Autômato Romancista


A porta de uma sala empoeirada e mal iluminada se abre depois de muito tempo.

Por um instante, a luz exterior alcança a mesa e as duas cadeiras solitárias no centro do cômodo, revelando o residente de olhos de vidro e corpo de metal sentado em uma delas – coberto pela poeira do tempo, como todo o resto.

– Olá, velho amigo.

Após fechar a porta novamente, o senhor grisalho se aproxima da figura imóvel sem aguardar por uma resposta. Seus olhos se voltam para as mãos tomadas pela ferrugem e paralisadas sobre o teclado da antiga máquina de escrever, como se a qualquer momento pudessem voltar a digitar.

– Muitos anos se passaram… tanta coisa mudou. Outras permanecem iguais.

Ele ocupa a cadeira vazia em frente ao companheiro silencioso, deixando sua mente voltar a um passado distante, porém inesquecível.



Venham, venham todos, não percam a mais bombástica novidade de nosso empreendimento!!! O ápice da maravilha da ciência e tecnologia!!!”

Os anunciantes derretiam-se em palavras de impacto, chamando a atenção dos transeuntes e rapidamente juntando uma multidão curiosa sobre as tais novidades bombásticas. No centro do pomposo estande, protegido por um cordão de distanciamento, havia apenas uma… pessoa, talvez, sentada imóvel em frente a uma máquina de escrever.

– Hoje temos o prazer de apresentar a maior revolução criativa da sociedade desde a invenção do papel!!! Desenvolvido com a mais avançada inteligência artificial do mundo, pedimos uma salva de palmas para ele: o primeiro autômato romancista da História!!!

Um burburinho tomou a plateia tentando ver melhor a criatura que, obviamente, não poderia ser humana. Como não respirava, não havia aberturas para as narinas. Não piscava os olhos de pequenas pupilas. Sua pele metálica refletia a luz do sol, exibindo as articulações e engrenagens perfeitamente esculpidas. Ora, nem mesmo uma boca se importaram em adicionar ao modelo, pois não havia necessidade de fala.

Interesse, empolgação e rejeição se alternavam nas expressões e sussurros da audiência. Rapidamente, o empolgado anunciante segurou o pulso gelado do autômato, levantando seu braço sem se preocupar em pedir permissão.

– Observem as falanges e articulações das mãos e dedos, desenvolvidas para executar o mais eficiente nível de palavras-por-minuto! Nossos testes indicaram uma média de 800 PPM, repito, nada menos que 800 PPM!! Largamente superior ao de qualquer ser humano do presente, passado e futuro!!!

– Mas como isso escreve? Vai escrever um livro inteiro do nada? – Uma mão se ergueu, iniciando os questionamentos.

– Excelente pergunta, jovem!!! Nosso Autômato Romancista é dotado de um banco de dados composto de mais de dez mil livros e 500 mil periódicos, introduzidos organicamente no sistema para servir de matéria-prima para criação de infinitas novas obras! A versão 1.0 pode absorver 700 páginas por min...

– Usando o que já foi escrito? Isso não é trapaça? – Uma segunda voz na multidão interrompeu, sem esconder a desconfiança.

– Mas as pessoas também usam livros existentes pra se inspirarem, certo? Ninguém cria do nada… é o mesmo com o robô, não é? – Retrucou uma terceira voz vinda da plateia.

– Porém, pessoas, em geral, pensam e adaptam  a partir do que leem. E plágio ainda é crime… mesmo se for um robô, alguém há de pagar a conta, certo? – Uma quarta voz respondeu, ampliando o raciocínio.

– VEJO QUE ESTÃO ENTUSIASMADOS COM NOSSA NOVIDADE! – Vendo seu grande evento sendo desvirtuado por uma avalanche de argumentos e especulações, a frustração se tornou evidente nas feições do anunciante por um momento. Ele ergueu a voz ao megafone, forçando o silêncio com um sorriso desconfortável. 

– Obrigado! Naturalmente, sabíamos que dúvidas surgiriam, por isso viemos oferecer um período de testes gratuito! O Autômato ficará aqui, disponível a todos que quiserem sugerir suas histórias! Garantimos que não há ideia que ele não possa desenvolver em tempo recorde!

Assim, filas se formaram por uma chance de descrever uma ideia ao Autômato. Logo várias pessoas se viram fascinadas pela velocidade da digitação, vendo histórias surgirem a partir de uma única frase, tema ou sinopse. Algumas pessoas já se perguntavam quando poderiam ter um em casa, pois facilitaria tanto deixar as crianças tagarelando indefinidamente com um desses para aliviar os exaustos pais. Entretanto, algumas mães argumentavam que um robô de dobrar e passar roupa naquela velocidade seria cem vezes mais interessante.

– Estamos preparando uma oferta imperdível ao fim de nosso período de testes!!! – O anunciante transbordava de contentamento pela recepção calorosa e crescente popularidade da invenção de seu contratante.

A certa altura, chegou a vez de um jovem fazer seu pedido ao incansável Autômato.

– Crie uma história sobre um robô assassino.

Em cerca de dois minutos, a história estava pronta e o jovem se retirou. Porém, no dia seguinte ele retornou, com os papéis em uma mão e um livro na outra.

– Sua história é praticamente igual aos contos do Asimov, apenas trocando um personagem e algumas falas. Não precisamos de um robô pra isso. Pode fazer alterações?

[ALTERAÇÕES INDISPONÍVEIS NA VERSÃO 1.0. FAVOR INSERIR NOVA IDEIA.]

– Que seja. – o jovem revirou os olhos. – Crie uma história sobre um robô se autodestruindo. Sem usar como base um livro de ficção científica.

Rapidamente, o Autômato entregava a nova história ao jovem. E no dia seguinte lá estava ele novamente, munido dos papéis e de um outro livro.

– Você só transformou o Javert de Os Miseráveis em um robô, é até engraçado… Mas preciso de uma história original sobre um robô se autodestruindo… vamos ver, 'por não ter encontrado um propósito em sua existência'. Pode fazer isso?

Mais uma vez, o Autômato seguiu as instruções sem se importar com as críticas. E mais uma vez o jovem retornou no dia seguinte, argumentando que apenas havia mesclado outras histórias novamente e inserido a frase ao final sem contexto.

Ao final da segunda semana, essa não era a única situação desconfortável envolvendo o Autômato Romancista. Diversos grupos já haviam se formado ao redor da atividade de destrinchar de quais livros e autores vinham suas histórias, as incongruências e até mesmo fatos incorretos misturados ao texto. Um caso particularmente popular foi a história na qual o Presidente da República era um tofu gigante sem motivo aparente.

Incidentes engraçados à parte, os anunciantes precisaram retirar o Autômato do estande por três dias por conta da controvérsia com a Sra. Shelley e suas sólidas evidências de que muitas histórias partiam descaradamente de seu renomado romance. Afinal, alguém há de pagar a conta – e um robô não possui fundos bancários.

Apesar de tudo, as filas para o Autômato continuaram longas quando ele voltou ao posto com promessas de atualização. De acordo com os anunciantes, agora ele seria capaz de escrever a partir de suas próprias criações, evitando a principal controvérsia.

E em meio a muitas crianças e adolescentes, aquele jovem também retornava à fila.

– Tenho uma ideia nova para você. Pode criar uma história sobre a humanidade se autodestruindo? Utilize apenas o que você mesmo escreveu até hoje.

O Autômato começou a digitar como sempre, parando após um minuto. Porém, ele não entregou nenhuma página, repentinamente travando na posição de digitação. Intrigado com o comportamento inédito, o jovem esticou o pescoço para ler a última linha escrita em caixa alta.

[DADOS INSUFICIENTES PARA UMA RESPOSTA SIGNIFICATIVA]

– O que isso quer dizer?

Essa pergunta seria repetida à exaustão pelos próximos dias, enquanto os desenvolvedores tentavam fazer o Autômato voltar a escrever ou se movimentar. Aparentemente, ele entrara em um “loop lógico”, incapaz tanto de continuar quanto de encerrar ou recomeçar a tarefa.

Os otimistas compararam o caso a um “bloqueio criativo” genuíno, já os céticos viram isso como uma prova das limitações intrínsecas de uma máquina em relação à mente humana. E os desenvolvedores alegavam que seria um bug resolvível nas próximas versões.

De qualquer forma, aquele Autômato Romancista em particular nunca mais se moveu.

Eventualmente, ele foi repassado a uma exposição cultural e esquecido em algumas décadas no acervo permanente de um museu tristemente sucateado. Em pouco tempo, a sociedade se deparou com novidades mais impactantes e problemas mais graves do que robôs ultrapassados – e as ações da empresa desenvolvedora caindo vertiginosamente não ajudaram em sua preservação e na de muitos de seus pares.



Porém, o jovem que uma vez pedira a última história incompleta nunca poderia esquecê-lo, mesmo após uma longa vida humana.

– Foi bom vê-lo novamente antes que meu tempo neste mundo acabe.

Antes de se levantar, o senhor grisalho retira de seu capote uma cópia do livro mais ovacionado de sua carreira, e também seu trabalho mais pessoal, uma obra de ficção refletindo sobre a autodestruição da humanidade.

– Autografei pra você. De romancista para romancista, quem sabe não o inspira a terminar sua obra também?

Sem alarde, a porta da sala empoeirada e mal iluminada se fecha pela última vez.

Fim

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